Selecionado para a Mostra Competitiva de Longa-Metragem Documentário do 53º Festival de Cinema de Gramado, o filme 'Os Avós', dirigido por Ana Lígia Pimentel, marca uma conquista inédita para o cinema produzido no Amazonas. A produção observa um fenômeno cultural naturalizado, mas atravessado por tensões e silêncios: homens e mulheres que se tornam avós ainda jovens, entre 30 e 35 anos, num ciclo afetivo e familiar acelerado que revela heranças profundas de desigualdade, ausências históricas e reinvenções do cuidado.
O filme é resultado de uma escuta construída ao longo de anos pela diretora, que vive desde 2017 na comunidade ribeirinha do Livramento, em Manaus. É desse lugar - de convivência cotidiana, amizade e pertencimento - que surge a narrativa, construída com olhar íntimo, ético e poético. A câmera acompanha as personagens com delicadeza, sem imposição, permitindo que a força das histórias emerja em gestos, silêncios e fragmentos de conversa.
“Convivendo direta e indiretamente com famílias jovens na zona ribeirinha de Manaus, percebi que pessoas em extrema vulnerabilidade emocional estavam passando por uma situação cíclica e cultural. Essa conjuntura afeta principalmente as crianças - inclusive nas relações sem muito afeto com as próprias mães”, afirma Ana Lígia.
Filmado entre comunidades ribeirinhas e urbanas do Amazonas, 'Os Avós' rejeita a lógica expositiva e aposta numa linguagem sensorial, guiada pela fotografia de Ana Rezende, que transforma a luz da floresta e os ritmos dos rios em metáforas visuais. A montagem, assinada pela própria Ana Lígia com consultoria de Jordana Berg (membro da Academia do Oscar), alterna respiros poéticos e momentos de confronto emocional. A narração de Maria Ribeiro costura perguntas, memórias e deslocamentos, sem entregar respostas prontas.
“Na época em que comecei a escrever o argumento de 'Os Avós', eu não sabia se seria um filme ou uma pesquisa literária. Tinha desistido do audiovisual e trabalhava com Turismo, minha primeira formação, enquanto vivia a maternidade na floresta. Cheguei a achar que o projeto era uma ilusão. Pensava: ‘Moro em Manaus, não tenho contatos no meio, não sou milionária, nunca vai dar certo viver disso.’ Mas me inscrevi num edital público sem expectativa, e passei em primeiro lugar. Produzir 'Sete Cores da Amazônia' reacendeu algo em mim. Quando terminei, soube que 'Os Avós' seria o próximo. E foi. Esse projeto é fundamentado no meu desejo sincero de expor essas histórias”.
A presença do longa na mostra principal de Gramado, que acontece de 13 a 23 de agosto de 2025, representa um marco para o cinema nortista, historicamente sub-representado no circuito dos grandes festivais brasileiros. Apesar de participações pontuais e significativas ao longo das décadas, como O Barco e o Rio (de Bernardo Abinader, 2020) e Noites Alienígenas (2022), 'Os Avós' é o primeiro longa-documentário do Amazonas a integrar a competição oficial.
“Pelo ineditismo do tema que abordamos na obra, imaginávamos que alguns festivais poderiam se identificar. Mas Gramado foi uma linda surpresa. Representar o Amazonas é uma honra e missão muito grandes. Queremos ressaltar que o cinema e as histórias do Amazonas são interessantes, potentes - e parte de um Brasil profundo e desconhecido dos demais”, diz Ana Lígia.
Para a atriz e escritora Maria Ribeiro, que assina a narração, "'Os Avós' é um filme urgente e necessário. E chega exatamente quando estamos aqui falando, finalmente, sobre adultização de crianças. Ana Lígia soube ler o tempo como ninguém, é uma grande cineasta, está completamente inserida na realidade das mulheres da Amazônia, e consegue fazer arte de denúncia ao mesmo tempo. Quero fazer muitos projetos com ela, e estou muito honrada de ser a voz que conta essa história. Uma história triste, que precisa chamar a atenção de todos de uma vez por todas".
Com 90 minutos de duração, 'Os Avós' insere-se no cenário do cinema documental brasileiro como uma obra que une observação sensível e crítica social. Ao retratar um ciclo geracional, o filme ilumina brechas de um sistema que, mesmo oferecendo assistência médica e informação, falha em transformar estruturas culturais, emocionais e históricas enraizadas.
Mais do que denunciar ou explicar, o longa se propõe a escutar. E, ao escutar, reimagina o cuidado, a maternidade, o tempo e o futuro a partir do Norte do Brasil.
SOBRE A DIRETORA
Ana Lígia Pimentel é formada pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro e também fez curso de cinema em Los Angeles. Desde 2017 mora no Amazonas. Realizando filmes e vídeos sobre a região, como a videoarte Galeria Decolonial com narração de Selton Mello. Em 2022, Ana estreou o longa “Sete Cores da Amazônia”, filme que foi exibido em festivais e recebeu o selo internacional de Bechdel. Ana também faz trabalhos como agente cultural comunitária. Mantém projetos continuados como o Cine Selva, Cine Beiradão e Ribeirinho Cult.
Em 2025, finaliza seu novo longa-metragem, o documentário “Os Avós”, com narração de Maria Ribeiro e consultoria de montagem de Jordana Berg.
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